sexta-feira, 2 de abril de 2010

Cinza (Parte II)

Que frio! Sinto saudades de minha mãe. Se não fosse pelo meu pai, talvez essa poça desse misto de sangue e pó não fosse de quem é. Eu sinto a fumaça saindo do cano... o calor... eu ainda lembro do quão disparado bateu meu coração minutos antes de puxar o gatilho.

Eram duas da tarde. Depois de muito investigar, de muito examinar, de especular, de poucas noites dormidas... Sempre foi assim: horas e horas na internet, mas aquele momento era um pouco diferente. Desta vez, eu tinha um motivo. Meu pai foi morto por alguém. Nenhuma novidade até aí. Poucas honras feitas a ele. Eu sabia que ele se envolvia com gente barra-pesada, então o velório foi rápido. Nenhuma novidade.

Uma das vantagens do mundo moderno é a velocidade da informação. A polícia deixa muita coisa no plano virtual. Não é necessário ser hacker muito treinado (eu sou) para que se recolham “dicas” sobre qualquer caso. Não preciso dizer que foi o que fiz: usei os dados da rede de investigação da polícia e procurei pelo “Caso Marco”. Fácil demais.

Mataram o velho... a perícia encontrou em uma lixeira dois celulares. Um era do meu pai. O outro estava destruído, como se uma bala tivesse atravessado apenas uma das paredes dele por explosão interna. No fim das contas, estou certo: ele foi morto por alguém. Os dados apontaram um fato curioso no mortis causa: o projétil que matou meu pai não era uma bala. Era como uma bola de chumbo. Foi ela que atravessou o celular. Mas, dentre os celulares que a polícia encontrou, não era o do meu pai que estava destruído. "Uma armadilha" - pensei.


Como encontrar o desgraçado em uma cidade cada vez maior e mais cinza? Achei que fosse hora de ir pessoalmente ao apartamento do meu pai. Não queria vingar a morte dele, simplesmente. Eu gostaria de matar o homem que matou meu pai. Meu pai morreria pelas minhas mãos. E esse homem tirou isso de mim!

A perícia não sabia, mas meu pai tinha mais de uma arma. Uma em especial, eu conhecia bem o esconderijo. Perito nenhum observaria uma pedra falsa no banheiro, um cofre que raramente era aberto. Mas eu o vi fazendo. E não tive dificuldade nenhuma em reproduzir os movimentos dele para abrir o cofre.

Acessei seus e-mails também. Não entendi muita coisa, mas há uma rede em que meu pai trabalha. Um de seus rivais era Hugo. Se você mora nessa cidade, e sabe por que ela tem essa cor, deve conhecer Hugo. Papai trabalhou para ele, mas se desentenderam. Hugo traficava drogas, era “chefe grande”. Certamente, o meu pobre velho recusou essa parte do trabalho. Não vejo meu pai como herói. Mas ele não era vilão.

Deduzi que era hora de ir à polícia. Como sou jovem, decidi me vestir como nerd. Um estagiário de jornalismo, querendo ver o trabalho da perícia. Um policial me serviu como guia. Depois de ver a sala de “coletas” de provas de crimes, pedi para ir ao banheiro e de lá, chamei o meu “guia” pelo celular. Liguei para a estação de polícia e pedi que o chamassem. Ele foi atender o telefonema. E eu recuperei os celulares. O do meu pai e o outro. O guia voltou e eu consegui sair sem desconfiança de ninguém.

Usei o telefone. Exigiu muito de mim. Tive que usar alguns amigos que entendiam melhor isso de eletrônica. Não preciso dizer que eles são melhores que a polícia. A memória do telefone deu o nome do último número. Era o do meu pai. Mais algumas tarefas como hacker e encontrei o nome do homem que o ligou. Li também as poucas mensagens que ele mandava a uma certa G. No descobri muito a respeito dela. Só a admiração dele por ela. Pensei em sequestrá-la, mas eram poucas informações. Eu poderia matar os dois.

Esse é o tipo de vingança que não deve demorar muito. Por sorte, um dos meus amigos conseguiu um endereço "quente", possível morada do meu alvo e ligou para o meu celular. Apartamento 505. Anotei os dados, carreguei a arma e usei um circular para chegar lá. De bônus, meu amigo descobriu que ele não tem nenhuma arma registrada.

No caminho eu observei a cidade, algum assalto, muitas outras coisas que tornam essa cidade cinza. Uma nuvem escura começou a esconder o céu e colaborou para a falta de cor do cenário. Minha parada ficava a poucas quadras dali. Fui respirando fundo. Matar não é simples. De repente, um homem de chapéu em um casaco marrom me olhava. Ele estava na porta do prédio em que eu entraria. Ele entrou muito rápido no prédio. Suspeitei. Subi as escadas correndo. Ele estava subindo com alguma vantagem. Tirei a arma da cintura. A porta do 505 se fechou. Ouvi a tranca da porta funcionar. O apartamento 505. Coincidência?

Era hora do show! Disparei contra a maçaneta. Funcionou, a porta abriu. Estava escuro. Botei a mão em um interruptor, mas não havia luz. A única coisa que iluminava a sala era um espaço pequeno de uma janela entreaberta, mas o dia não é claro e tenho dificuldade. Finalmente avisto o vulto, abaixado em um canto. Que covarde! Fui andando para frente. Cinco balas. Despejei todas no desgraçado. Uma delas faiscou no casaco.

Senti como se uma abelha tivesse picado o meu peito. É parecido com quebrar uma costela. A dor era muita, acabei deitado no chão da sala. O pó do tapete assentava. Meu sangue começou a pintá-lo. O vulto continuava imóvel. A janela se abriu. Diante dela estava o homem que eu procurava, sem o casaco.

Apontei a arma para ele e puxei o gatilho. Estava sem balas. Meus olhos estão úmidos. Ele pegou o chapéu e deixou o casaco cair no chão. O vulto que vi eram quatro rodas de metal suportando o casaco e o chapéu. Perguntei de onde ele atirou. Ele disse que eu fui o único que atirou.

O calor do meu corpo parece estar acabando. Meu sangue fez uma poça. Frio. Sinto falta de minha mãe. Ele se ajoelhou ao meu lado e disse que eu também não tinha culpa. O verdadeiro culpado ia se ver com ele. Isso não me importa mais. A voz dele está ficando baixa. E está tão escuro...

(26/11/2006 – "Cinza" foi escrito. "Cinza II" foi escrito em agosto de 2008 e concluído no dia 26/03/2009)

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