quinta-feira, 7 de março de 2013

Ferro e Sangue (3)

Eu estava crescendo e entendendo que o Kendô era uma condição essencial para que um garoto se tornasse um homem. Meu pai, em certa manhã, levantou-se cedo e saiu de casa. Quando acordei, mamãe pôs o café da manhã à mesa, e disse que eu passaria a manhã sendo letrado.

"Letrado?" - questionei. Então ela me explicou que minha irmã já estava bem à frente quanto aos cuidados essenciais da casa, praticamente pronta para ser uma esposa, enquanto eu estava investindo muito pouco em ser um líder de família.

Não bastasse a manhã ter sido monótona, eu estava sem vontade de aprender. Tenho pena de minha mãe quando lembro disso: a paciente mãe tentando ensinar algo útil a um filho tão pouco talentoso. Escrevi algumas letras e ela elogiou. Não verdadeiramente devido ao meu esforço, mas por conformidade com a situação. Se hoje eu perguntasse, ela negaria isso, mas seu orgulho era falso... era simplesmente para me dar alívio, como se eu realmente tivesse aprendido...


Durante o almoço, observei os longos cabelos negros de minha irmã mais velha. Mamãe tinha mesmo razão, ela estava pronta para se tornar uma esposa. Sabia preparar chá, tocava sangen, cantava e tinha a devida polidez de uma gueixa. Depois, mamãe pediu que eu buscasse água no poço. o balde era de madeira grossa, pesado por si só, para o meu tamanho. Mesmo assim eu fui, pois ela havia pedido.

À tarde os garotos chegaram. Daiki amarrou o obi marrom e, como era de costume, iniciou o treino. Depois de revermos o básico, ele ensinou-nos um exercício chamado "o quadrado", no qual um de nós ficava no centro de um quadrado composto pelos outros. Ele dizia os nomes daqueles que ficavam nas pontas para que atacassem aquele que ficava no centro. Hideki foi o primeiro. Ele só sofreu na defesa dos golpes de Daiki. Dos restantes, surpreendentemente todos foram bem defendidos e por muitas vezes contra-atacados.



Daiki explicou que o exercício tinha variantes: Reta quando eram apenas 2 ou 3. Triângulo quando eram 4, Quadrado quando eram 5 e Círculo quando eram 6 ou mais. Chegou a minha vez... Daiki gritou o nome de Tadashi que posicionava-se às minhas costas no momento. No entanto, atacou-me lentamente, na esperança que eu pudesse defender. Deu certo. Daiki chamou Takeshi que não teve piedade em relação à velocidade, mas estava na minha direita e consegui desarmá-lo. Depois gritou o nome de Hideki, que fez muita finta e acabou não atacando.

O próprio Daiki veio em minha direção em silêncio, estava na minha esquerda, mas por ser o maior, consegui perceber e defendi de suas duas investidas. Comecei a suar. Estava definitivamente cansado. Ele chamou Takeshi novamente, eu consegui virar meu torso, mas era tarde:  golpe vinha pela lateral e acertou meus dedos, fazendo-me soltar o boken.

Com esse incidente, Daiki encerrou o treino. "Sem-graça!" - exclamou Hideki. E os dois pegaram suas coisas e saíram. Takeshi e Tadashi ficaram. Queriam que eu os treinasse. Precisei de uma hora inteira com uma toalha molhada enrolada na mão para me recuperar do golpe que Takeshi desferira. Depois disso, nosso treino acabou virando brincadeira: Takeshi havia trazido a máscara de Tengu do pai e brincamos de "Samurai-demônio" com ela. Sempre prometíamos a nós mesmos que confeccionaríamos uma armadura de madeira para cada um, promessa que só de deixou cumprir em ombreiras de madeira, sendo que as que fiz para mim eram dispares em tamanho. As de Tadashi eram invejáveis, ele havia as plainado em um formato artístico. As de Takeshi não eram boas, mas eram mais bonitas que as minhas.

Takeshi, em nossa brincadeira, se escondia e nos atacava na espreita, de modo que se o boken dele nos tocasse em qualquer ponto, exceto as ombreiras, era considerado uma fatalidade: o corte "nos queimava" e só nos "salvaríamos" se tocássemos no poço, onde "o fogo apagaria". E foi no meio de uma dessas brincadeiras que aconteceu o pior... Takeshi escolheu um momento em que eu o procurava e apareceu repentinamente por trás da Sakura de minha casa. Eu já deveria estar esperando algo assim, e não sei o que deu em mim, mas ignorei as regras da brincadeira e acertei-lhe o queixo, arrancando-lhe a mascará de Tengu. Como se isso não bastasse, o mesmo golpe raspou-lhe no queixo e acertou em cheio em seu nariz no sentido baixo-cima.

Ele caiu e ficou inerte. Um pedaço do queixo da máscara separou-se do restante. O Sol parecia ter ficado mais forte. Os grilos pareciam fazer som mais agudo. Tadashi apareceu e seu sorriso murchou. Sangue saiu do nariz de Takeshi. Logo se misturou com o sangue da boca. Ou teria sido apenas a quantia de sangue do nariz? Eu estava assustado demais para saber.

Erguemos Takeshi e o levamos até o poço. Deixei Tadashi com ele e fui verificar o que mamãe e minhas irmãs faziam. Estavam ocupadas, felizmente. Quando voltei, Tadashi olhava para dentro do poço e Takeshi não estava lá. Sim, ele havia caído dentro do poço. Mas se mexia muito, o que era um bom sinal, até certo ponto. Tadashi amarrou a corda em si mesmo e pediu que eu o segurasse. Astuto, ele colocava mãos e pés nos espaços entre as pernas. Conseguiu pôr Takeshi nos ombros e, com muito esforço, conseguimos tirá-lo de lá.

Ouvimos o portão do dojo abrir. Era meu pai. Tadashi carregou Takeshi até o portão dos fundos. Fui com eles. Takeshi apenas me olhava fundo. Levantou-se por suas próprias pernas e saiu andando. Tadashi também me olhou, mas menos sério. "Diga a ele que eu... Pede pra ele não contar..." - eu disse a Tadashi.

Papai havia comprado um doce de feijão e o dividiu em 12 partes. Deu uma para minha mãe, ficou com uma para si e deu 5 para mim e outros 5 para minha irmã. A mais nova não comeria, não tinha dentes nem cabelo ainda. Guardei os meus e dei-lhes a Takeshi no dia seguinte, um a cada hora da tarde.


Fez-se a última tarde quente da primavera. Abafada, causou um calor enjoativo no meu pai. "Quero que vá à nascente do riacho e pegue água fresca." - disse ele. Eu, cansado pelo calor também, e até motivado pela molecagem mesmo, fui até o poço secretamente, enchi o balde pesado, e o entreguei a meu pai. Ele colocou a água num copo, e no segundo gole a cuspiu no chão. Jogou o resto do copo em minha face.

"Agora eu quero que vá até o riacho, até a água mais clara que encontrar. Mas não leve o balde!" - ele gritava - "Vá até o ponto da água em que você puder ver a si mesmo. Quando você olhar o seu reflexo, quero que pense: 'Para que eu presto?' "

Naquela noite eu fui dormir mais cedo que todos. Mas duvido muito que eu tenha dormido antes de qualquer um daquela casa. "Oh, meu pai... o senhor mal imagina o quanto estava certo."

A casa Masato ainda não tinha um herdeiro que fosse homem. Naquela noite, eu não chorei. Meus olhos estavam cheios. E eu estava cheio de vergonha.

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