Era uma vez uma menina, que a chamaremos de Chapeuzinho Vermelho. (Não que seja bonito colocarmos apelido na menina, não que ela não tivesse nome, não que ela use vermelho em apologia ao comunismo, mas apenas para o desenrolar desta fábula, a menina usa uma capa vermelha, mas chamemo-na de Chapeuzinho Vermelho.)
Um dia, a pequena Chapeuzinho Vermelho foi chamada por sua mãe. (A mãe estava em casa, não porque é lugar de mulher...ocorre que nessa ocasião era um sábado. A mãe de Chapeuzinho trabalha, é um membro produtivo da sociedade.)
- "Chapeuzinho"... - dizia ela - ...quero que leve esses doces (dietéticos, sem lactose e de origem não-animal em seu preparo) e essa água mineral sem gás para a sua vovozinha. Não que eu ache ela velha demais para se alimentar, não que eu seja adepta para o trabalho infantil, mas apenas para que façamos um agrado à tão gentil mulher já de tenra idade.
Chapeuzinho concordou. (Não porque essa fosse uma tarefa para uma menina, nem que sua mãe fosse uma exploradora da mão de obra infantil, mas queria mesmo fazer um agrado à sua doce vovozinha).
- Mas... - advertiu a mãe de Chapeuzinho - ...eu gostaria que você optasse pelo caminho do Bosque. Entenda, minha filha, que você não é obrigada a nada. Você pode escolher, é uma menina livre! Mas tenho receios que não seja seguro ir pela Floresta.
Como não se pode ver a cara do sujeito antes de confirmar um UBER, Chapeuzinho Vermelho partiu, sozinha. Afinal, ela é uma garotinha, ela não depende de ninguém. Ela conquistou esse direito: a independência e a liberdade de ir e vir.
Quando chegou a uma bifurcação, entrou em um dilema: seguiria as instruções de sua mãe, indo pelo Bosque ou entraria na Floresta. Ocorre que a Floresta era declarada terra improdutiva, mas ainda não houve assentamento do MST por lá. Aquele espaço estava tomado por pezinhos de morango (saudáveis, livres de agrotóxicos aprovados pelo governos federal), que tentavam a menina a incrementar a cesta de doces (dietéticos, sem lactose e de origem não-animal em seu preparo) que ela carregava (não por ser adepta ao trabalho infantil, não por pensar ser uma tarefa de menina, mas para agradar sua doce vovozinha).
Usando de sua liberdade de escolha (conquistada há anos pelo movimento feminista), Chapeuzinho Vermelho optou pela Floresta. Ela era livre para escolher. Um direito seu, do qual ela não abria mão. Foi quando, durante sua colheita de morangos (e veja bem, esses morangos não era propriedade de ninguém, não tinham dono, sua permanência não se tratava de um programa de governo que distribuísse morangos aos mais necessitados, eles apenas estavam lá), foi avistada por um Lobo. (Não estou dizendo que esse lobo seja mau, talvez até seja adepto ao vegetarianismo. Com um pouco de paciência, poderemos deixar a história prosseguir sem julgá-lo.) Ele, então aproximou-se dizendo:
- Bom dia, menina! Posso saber aonde vai? Sem querer ser taxado de intrometido, não que seja da minha conta, sem querer ser invasivo ou quebrar a santidade de sua privacidade.
- Bom dia, Sr. Lobo! Eu vou levar esses doces (dietéticos, sem lactose e de origem não-animal em seu preparo) para minha vovozinha. Não porque essa seja uma tarefa para uma menina, nem que minha mãe seja uma exploradora da mão de obra infantil, mas para fazer um agrado à minha doce vovozinha.
E assim, o Lobo a deixou passar. Desconhecemos o motivo (pois não podemos julgá-lo), mas ele conhecia melhor a Floresta [possível patrocínio do Waze ou Google Maps aqui - verificar], chegou na casa da Vovozinha de Chapeuzinho Vermelho (que tem nome, mas vamos chamá-la apenas de Vovozinha, unicamente para o fácil entendimento dessa fábula). Talvez o Lobo quisesse alertá-la dos perigos de uma alimentação sem proteína animal, mas não diremos ao certo, para não tomar partido.
O Lobo convenceu a Vovozinha a se esconder em um guarda-roupas, apenas para pregar uma peça na jovem Chapeuzinho Vermelho, concordando com a interatividade resultante de tal ato (tão necessária na vida das crianças). Ainda antes de Chapeuzinho vermelho chegar, o Lobo pegou uma das camisolas da Vovozinha emprestada e a vestiu, colocando, inclusive, a touca de sono da simpática senhorinha, sem comprometer em momento algum sua sexualidade. (Mas, mesmo que comprometesse, porque haveríamos de julgar os atos de um Lobo? Saiba você, leitor, que o Lobo pode ser o que ele quiser, e ninguém pode questionar ou afirmar que isso é errado!) Por último, deitou-se na cama da Vovozinha (já com sua permissão) e passou a esperar-lhe.
Chapeuzinho Vermelho chegou e tocou o interfone. O Lobo, fazendo a voz mais emulatória possível, disfarçou-a como se a própria Vovozinha autorizasse sua entrada, informando Chapeuzinho que fosse diretamente até o quarto.
Chegando ao quarto, continuava o Lobo coberto pelo lençol e Chapeuzinho fitava a cena um pouco desconfiada. Deu bom dia e atreveu-se a perguntar:
- Vovó, porque essas orelhas tão grandes?
- Oh, minha netinha... - respondia o Lobo - ... essas orelhas muito ouviram e a tudo perdoaram. Hoje, são para ouvir sua doce voz, mas nunca para escutar conversas alheias.
Chapeuzinho continuou:
- E esses olhos tão grandes?
- Oh, esses olhos... tudo vêem e de nada duvidam, minha netinha! - respondeu o Lobo.
- E esse nariz tão grande? - quis saber Chapeuzinho.
- São para sentir os perfumes das flores, além de me ajudarem a segurar os óculos, minha netinha.
- E essa boca tão grande? - continuava a curiosa menina, no que o Lobo responde:
- Essa boca mantenho calada, porque é feio fofocar... além disso... puxa, Chapeuzinho! Quanto preconceito! Você sabia que é muito feio julgar as pessoas pela sua aparência???
Incontido pela discriminação advinda de uma menina tão jovem, o Lobo levantou-se da cama. É bem possível que ele fosse colocar Chapeuzinho Vermelho sentada sobre um "tapetinho do pensamento" por quantos minutos fosse a idade da criança. Mas levantou-se zangado, e isso assustou a menina, que gritava:
- Um lobo! Um lobo!
Gritos esses que foram ouvidos por um caçador que passava ali perto. Vendo pela janela a situação que ali se desdobrava, ele bravamente saltou sobre a cerca do quintal, abriu a janela e pulou no meio do quarto, para heroicamente salvar a menina:
- Acalme-se, menininha! Eu irei salvá-la!
Vendo o resultado da cena, Chapeuzinho não se conteve: colocou o dedo na cara do Caçador, chamando-o de sexista, pois, ora, até parece que uma menina jovem e empoderada precisa da interferência de um homem para que suas diferenças com um Lobo fossem resolvidas!!! Naquele momento, Chapeuzinho sabia duas coisas: 1 - em quem o Caçador votou; e 2 - Como a cultura do machismo perpetuou-se no cotidiano.
Não vendo outra opção, o Lobo mostrou o guarda-roupas onde estava escondida a Vovozinha. Lobo e Vovó pediram desculpas à Chapeuzinho Vermelho, mas ela já estava com o notebook ligado, com uma versão original do Windows 10 e com anti-vírus pago pelo ano de 2019, recém-formatado. Ali, digitou um Termo de Conduta, no Word (também licenciado) na qual combinava com o Lobo de que haveria de manter uma distância segura dela e de sua Vovó, pois a experiência fora traumatizante para a menina.
Assinaram digitalmente e Chapeuzinho enviou o Termo para o cartório, para reconhecimento e, posteriormente, para seus advogados. Temendo um processo, o Lobo nunca mais foi visto a menos de 200 metros de Chapeuzinho e/ou sua avó. O caçador ainda responde a processo por invasão de propriedade.
E eles viveram felizes para sempre. Digo, não é da nossa conta o que eles fizeram com suas vidas, certo?
- FIM -
Confesso que a história não é minha, eu a li na faculdade, em um livro que jamais encontrei uma segunda vez, na primeira década de 2000, chamado "Fábulas Infantis Politicamente Corretas". Esqueci o nome do autor, também. Mas lembro da leitura ser divertidíssima, então para esse texto, só precisei atualizar algumas coisas, mas mantive o "politicamente correto".
E, vou te dizer, é um saco escrever assim. O livro era dos anos 80, e já havia o chamado "mimimi psicopedagógico", atualmente conhecido como "Geração Nutella".
Se precisarem de mim, estou em um cantinho, chorando.
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